Certa vez, em uma véspera de réveillon, eu estava triste e desolado. Descrente comigo e com a vida. Estava sem brilho e sem perspectivas. Mamy Gloss ficou feliz ao me ver naquele estado, achou que eu estava virando homenzinho e que, finalmente, ia tomar um rumo na vida. Sem se conter de felicidade, mamãe esboçou algumas palavras e comentou com aquela sua cliente rica, Elvira Berta, que achava que eu finalmente tinha deixado aquele meu jeito exagerado e extravagante de ser. Elvira Berta ouviu tudo calada, apenas bebericava seu champagne. Quando Mamy terminou de fazer a unha, Elvira mandou me chamar, disse que queria conversar comigo. Elvira sempre me surpreendeu. De um modo geral, ela me ignorava ou fazia um ar blasé quando se dirigia a mim. Não sei por que, neste dia, ela me chamou reservadamente para conversamos no gazebo, que ficava no jardim de sua casa. Ela, que já vinha bebendo champagne desde o início da tarde, recostou-se confortável e elegantemente em uma chaise longue e disse para eu me acomodar na outra ao lado. Sentei-me desconfortável e desengonçadamente. Anos mais tarde, quando atingi a consciência corporal plena é que passei a conseguir me sentir à vontade em móveis com design sofisticado. Ela me olhou ali com um ar esnobe e pediu para Javier, seu mordono argentino, servir-nos Veuve Clicquot. Depois de bebericar, ela já disparou:
- Sei que você está mal, mas isso não é desculpa para se sentar desse jeito. Esse ombro arqueado, essa coluna torta, esse pescoço projetado para frente, enfim, essa compleição física de retirante sofrido, que carrega nas costas o peso da pirâmide social, irrita-me profundamente. A falta de postura é, antes de tudo, uma fraqueza de espírito. Ter postura é um ato de coragem, é muito mais um ato de não-aceitação da sua condição do que a inevitável consequência de uma vida sofrida sobre suas vértebras. Se você aceitar tudo que lhe jogam nas costas, vai envelhecer encurvado e no fim de uma existência medíocre, vai estar literalmente arrastando a cara no chão. É isso que você quer? Se você quiser livrar-se desse ranço de deselegância que você arrasta, comece por uma postura adequada. E por "postura adequada" entenda-se: estado de espírito adequado, nem que isso signifique desprezar e ignorar tudo aquilo e aqueles que lhe joguem para baixo. E, por favor, quando eu estiver falando com você, olhe diretamente nos meus olhos. Desvios de olhar frequentemente são os primeiros sinais de desvio de caráter... Mas lhe chamei aqui porque sua mãe disse que você andava descrente, murcho, apagado... Em se tratando de você, achei, no mínimo, improvável que tais adjetivos pudessem ser aplicáveis a sua pessoa. O que aconteceu com você para lhe deixar nesse estado?
Aquelas primeiras palavras de Elvira me deixaram em pânico. Era um misto de medo, desconforto e um pouco de desilusão comigo mesmo. Eu estava desbaratinado. Apesar de antes eu sempre ter treinado com água gaseificada, era a primeira vez que estava bebendo champagne e não foi nada glamuroso. Quando vi, estava segurando a taça com as duas mãos e o cristal estava todo impregnado de suor. Tinha crises terríveis de sudorese quando ficava nervoso. Fiquei catatônico por um tempo. Elvira já impaciente, disse para que eu respondesse logo. Foi então que recobrei a consciência. Balbuciando e gaguejando respondi:
- Não, não aconteceu nada não. É que sou muito estranho. Desde de quando era mais novo, só escuto todo mundo dizer: "Hugo não é de Deus, tem alguma coisa errada com esse menino."; "Isso daí é castigo, pra mãe dele aprender a ser menos assanhada."; "É falta de pai, filho de mãe solteira dá nisso, vira meia-moça.". Quando tava no primário, uma professora me deu zero, só porque minha prova tava toda beijada de margarina e quando foi me entregar ainda disse na frente de todos os colegas: "Você é uma aberração, Doriana". Dentro de mim eu me acho o máximo, mas os outros sempre mangam de mim. Aí tenho vontade de chorar. E agora só fico feliz quando me escondo dentro de uma caixa de papelão, que veio na geladeira nova do vizinho. Eu fico assim, perdido, não sei o que ser.
Enquanto eu falava, em vários momentos Elvira se segurava para não rir. Mas sempre muito direta e objetiva ela levantou a taça de champagne contra a luz e disse:
- Tá vendo isso daqui? É a minha bebida predileta. Já há um bom tempo o champagne é considerado o ouro líquido e espumante. Mas nem sempre essas borbulhas, que hoje trazem à nossa mente uma profusão de aromas elegantes e alegres, foram bem vistas. O champagne começou como um vinho que deu errado. Você não deve saber nada de vinhos, não é? Então deixe-me explicar. A base da fabricação dos vinhos é a fermentação. Antigamente, colocava-se o suco em barris abertos e, com a temperatura ideal, as leveduras se deliciavam com o suco de uva. Os subprodutos daquele banquete de fungos eram o álcool e o gás carbônico, que escapava para o ar. Ocorre que, durante o Século XVII, numa época que hoje é conhecida como Pequena Idade do Gelo, as baixas temperaturas do inverno interrompiam o processo de fermentação. As leveduras permaneciam adormecidas até a primavera, quando então acordavam e reininiciavam o processo de fermentação, que havia sido interrompido. O problema é que na primavera os vinhos já tinham sido transferidos para os barris fechados e o gás carbônico que agora era liberado ficava retido dentro do barril, em forma de pequenas borbulhas. No início, essas borbulhas nada mais eram do que uma incoveniente espuma que "estragava" o vinho. Quando o vinho tinha essas borbulhas, era chamado "vinho do diabo". As borbulhas, que hoje são objeto de veneração, eram consideradas como um indesejado acidente. Havia até um monge cego especialista em eliminar tais bolhas, tratava-se do lendário Dom Pierre Pérignon, que hoje tem seu nome imortalizado num dos mais aclamados champagnes do mundo. E como a vida é uma ironia e os golpes de publicidade não são uma virtude exclusiva dos nossos dias, há muito criou-se uma lenda de que Dom Pérignon teria "inventado" o champagne. Mas, como eu disse, tudo não passou de um acidente e as preciosas borbulhas eram vistas como um estorvo a ser eliminado.
Eu fiquei sem entender por que diabos ela tinha me dito aquilo. Ela, já se antecipando, disse:
- Eu sei que tudo isso é muita informação para você. No entanto, suponho que você seja inteligente o suficiente para perceber que essa história de como o champagne passou a borbulhar é uma lição de vida e superação. As borbulhas incovenientes, que "estragavam" o vinho, que era sinônimo de desgraça para vinicultores, com o passar do tempo, tiveram o seu valor reconhecido. E, de um indesejado acidente, o champagne passou a ser o mais desejado item de celebração nas festas de Luís XIV. Luís LX levou-o ao status de delírio na corte francesa. Nas festas de Napoleão, costumava-se beber em torno de 1000 garrafas em uma única noite. Somente os mais ricos, dentre os mais ricos, conheciam o apelo sensual do champagne. Madame Pompadour costumava dizer que "o champagne é o único vinho que deixa a mulher mais bonita depois de beber". De vinho renegado, o champagne passou a ser a bebida mais cultuada. Na escala evolutiva do refinamento, vez ou outra, o luxo e glamour encontram resistência até serem plenamente aceitos, Hugo. Geralmente, aquilo que subverte a noção óbvia das pessoas é hostilizado. E é isso que acontece com você. Você tem ar exótico, às vezes um pouco vulgar é certo, mas com alguns ajustes você pode se tornar um porta-voz do glamour. Você causa incompreensão nas pessoas. Você, definitivamente, não é óbvio. Das personalidades, de um modo geral, só me interessam aquelas que não são óbvias. Aquilo que é comum, corriqueiro, padrão me enfastia. Hugo, a vida para mim é uma passarela e eu estou sempre sentada na primeira fila. Estou exaurida com a mesmice. Você tem algo diferente. Você pode borbulhar.
Ela mal terminou de falar e eu me levantei. Um outro efeito colateral do meu nevorsismo foram os gases. Corri para o banheiro da dependência de empregada, mas antes de chegar, soltei um punzinho molhado. Sujei toda a minha cueca. Mas mesmo borrado, tinha voltado a me sentir o máximo. A partir dali decidi que não mais ia ser vítima da incompreensão alheia. E foi naquela tarde que concluí: se o verdadeiro champagne representa a volúpia em seu mais alto grau de luxo, a Sidra representa o apelo vulgar de uma prostituta desdentada.
Ter um passado para contar e uma história de vida é tendência. Hugo Gloss não se envergonha do seu passado. Hugo Gloss é a segunda fermentação do ser humano. Hugo Gloss é o acidente cuja consequência foi o luxo. Hugo Gloss é o subproduto inesperado, que veio para acabar com a mesmice. Hugo Gloss é o inimigo do óbvio e dos donos de obviedades.
Que venha 2010, repleto de borbulhas e de surpresas! Se você não puder tomar champagne, beba pelo menos água com gás. O que importa é a postura. Desejo que vocês, meu funguinhos amados, consigam fermentar essas vontades reprimidas, liberando suas próprias borbulhas de luxo e glamour, e que cada pequena conquista diária seja digna de um brinde. Enfim, que vocês passem por 2010 e não que o ano de 2010 passe por cima de vocês. A cara da riqueza não está (apenas) nas suas roupas, está em você mesmo, é só escolher usá-la. Ahaze sem medo!
Beijos do Gloss, que já foi Doriana. Tin-Tin!!